“Jovens, à época, empolgados com as
possibilidades abertas para construção de um novo futuro para o país, e, ao
mesmo tempo, convencidos do retrocesso político, econômico e cultural
sinalizado pela implantação de um regime autoritário, criaram as suas diferentes
formas de resistência ao arbítrio e
ao atropelo dos direitos inalienáveis da pessoa humana. Pagaram um preço
inaudito por sua ousadia e destemor. Foram vítimas da tortura, da prisão e do
exílio... e muitos tiveram suas vidas ceifadas nos porões da violência
institucionalizadas” (DIAS, 2014, p.13).
Por: Cláudio Márcio[1]
O
documentário Muros e Pontes: memórias Protestantes na ditadura[2]
ajuda a refletir sobre a temática do Estado
Laico e a função religiosa, pois, propõe desvendar memórias como uma
espécie de recontar narrativas experimentadas por jovens protestantes
ecumênicos (homens e mulheres) durante o golpe de 1964. Ora, as memórias são
modos de articulações entre experiências vividas no fluxo do tempo, portanto,
passadas e presentes, ou seja, contar a memória é reconstruir um lugar no mundo
produzindo pertencimento político identitário, pois, a memória é produto e
produtora de mundo concomitantemente.
Partindo
deste pressuposto da fabricação de identidades, quem são esses rostos e essas
vozes apresentados no documentário? A função de entrevistador do documentário é do pastor
emérito da Igreja Presbiteriana Unida do Brasil e professor universitário,
Zwinglio M. Dias. Na realidade, ele ocupa um lugar dúbio, uma vez que, neste
processo de múltiplas identidades, ele ora realiza entrevistas, ora oferece o
seu depoimento como alguém que também carrega as marcas deste contexto
arbitrário militar brasileiro. O documentário oferece histórias de vida com um
misto de dor e esperança. Sinaliza ainda um contexto de efervescência política
onde as instituições estavam sendo questionadas por seus modelos hierárquicos,
muitos líderes religiosos não estavam preparados para serem interrogados e, ao
mesmo tempo, de fazer uma ponte entre a fé cristã e as inúmeras demandas
sociais do Brasil. Evidentemente que alguns jovens cristãos e ecumênicos
estavam dispostos a construir essa suposta ponte.
Assim
sendo, refletindo o protestantismo brasileiro é possível problematizar: por que
essas experiências de fé, luta, reflexão crítica e engajamento político foram
(são) negadas em muitas comunidades de fé? Falta de informação das lideranças? Trata-se de líderes mal intencionados? Por que negar a trajetória e influência de figuras como:
Richard Shaull, Waldo César, Jaime Wright, Paulo
Stuart Wright, João Dias de Araújo, Anivaldo Padilha e Rubem
Alves?
Uma das
formas de tentar responder a esses questionamentos é olhar para a parceria
feita entre o Projeto Marcas da Memória da Comissão de Anistia e Koinonia
Presença Ecumênica e Serviço, pois, ao desvendar e ou recontar um momento
histórico do Brasil e de alguns jovens ecumênicos, muitas narrativas são
potencializadas gerando imagens e sons desafiadores para outras gerações. Dito
de outra forma, esses depoimentos apresentam-se como contraponto de uma suposta
história oficial, uma vez que, esses homens e mulheres trazem no corpo e na
memória as marcas de um momento sombrio na política brasileira.
Com efeito,
é urgente romper com os paradigmas que não dialogam com a diversidade cultural
brasileira. É preciso compreender que existem protestantismos com
possibilidades múltiplas de vivência da fé. A Igreja Presbiteriana Unida do
Brasil (IPU) é um exemplo de uma forma de ser em que a dimensão da fé pode-deve
ser efetivada em sindicatos, partidos políticos, ONG’s, etc, logo, criou-se a
Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e a Comissão Ecumênica dos Direitos
da Terra (CEDITER).
Há um fragmento
narrado por Zwinglio M. Dias no documentário em que
ele e um grupo eram acusados de “ecumenistas”, ou seja, uma mistura de
ecumênicos com comunistas. Desta forma, esses jovens eram vistos como
“perigosos” para o ordenamento eclesiástico onde estavam inseridos, assim como,
para a ordem política vigente no país. Bem, tenho lido Richard Shaull e Frei
Betto, assim, penso ser necessário fazer uma distinção entre uma “bancada
evangélica” com características teocráticas e que em nada garantem os direitos
dos trabalhadores e trabalhadoras em nossa “pátria amada”, de uma fé que é
práxis libertadora, isto é, uma participação política engajada por justiça
social e garantia dos direitos de grupos sociais.
De fato, o documentário
traz a memória entre os tantos nomes o do Rev. João Dias de Araújo. De quem se
trata? Um líder religioso com formação em teologia, filosofia e direito. Um dos
fundadores da IPU. Ajudou a criar o SIM (Serviço de Integração do Migrante), em
Feira de Santana-BA. Autor de uma obra clássica para quem estuda o fenômeno
religioso protestante brasileiro, a saber: Inquisição sem fogueiras, ou seja,
trata-se de um líder religioso extremamente articulado com o solo brasileiro e
optou (assim como Jesus de Nazaré), em caminhar com e pelos “pobres”.
Evidentemente
que o processo de rememorização é sintético, pois, o reverendo João Dias foi em
vida muito mais do que o dito acima. Logo, como e ou por que ocultar uma
trajetória tão relevante e encorajadora? A quais grupos e ou sujeitos sociais
interessam o apagamento ou a omissão dessa e tantas outras memórias? Comungo
então que as lutas outrora travadas encontram-se atuais, sobretudo porque ainda
vivemos com as velhas inquietações abordadas nos fragmentos do que se tornou o
Hino oficial da IPU que diz: “Que estou fazendo se sou cristão, Se Cristo
deu-me o seu perdão? Há muitos pobres sem lar, sem pão. Há muitas vidas sem
salvação. Mas Cristo veio pra nos remir, O homem todo sem dividir: Não só a
alma do mal salvar, Também o corpo ressuscitar” (OLIVEIRA, 2014, p. 80).
Essa
era a característica das vidas acionadas no documentário: por uma teologia
pública crítica e libertadora. Assim, é necessário potencializar essas vozes
para que novas práticas possam brotar no protestantismo brasileiro. Lembremos
de Rubem Alves quando sinaliza: “Mas os mártires têm aparecido: Gandhi, Martin
Luther King, Oscar Romero e muitos outros. Líderes religiosos são intimados,
perseguidos, ameaçados, expulsos, presos... Ópio do povo? Pode ser, mas não
aqui. Em meio a mártires e profetas, Deus é o protesto e o poder dos oprimidos”
(ALVES, 2003, p. 111).
REFERÊNCIAS
ALVES,
Rubem. O que é religião. São Paulo:
Edições Loyola, 2003.
DIAS,
Zwinglio M. (org) Memórias Ecumênicas
Protestantes - Os protestantes e a Ditadura: Memória e Resistência. Rio de
Janeiro: KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, 2014.
OLIVEIRA,
Nilton, Emmerick. A Militância Política de um Presbiteriano “Comunista”... In:
DIAS, Zwinglio M. (org) Memórias
Ecumênicas Protestantes - Os protestantes e a Ditadura: Memória e Resistência.
Rio de Janeiro: KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, 2014.
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