Por Augusto Amorim Jr.[1]
Os que semeiam com lágrimas, ceifam em meio a
canções. Sl 126.5
Em setembro deste ano, a Igreja Presbiteriana
Unida celebrou seus 40 anos de existência. Na Bíblia, o “tempo dos 40” é muito
rico de significados. Destaco aqui os tempos de passagem pelo deserto. O povo
hebreu, que Javé liberta do império egípcio, caminha 40 anos pelo deserto rumo
à terra prometida. Jesus passa 40 dias no deserto, enfrentando as tentações em
lugar inóspito, antes de iniciar sua missão. O deserto, assim, é o espaço onde
se aprende a ser livre, com todos os riscos, angústias, desconfortos que isto
implica. É espaço também de bênçãos, partilha, renovo da fé e esperança. Espaço
de altos e baixos, de experiência da Graça que surpreende e aperfeiçoa na
fidelidade com o Reino de Deus, que como bem diz Paulo, é justiça, paz e
alegria no Espírito Santo.
A origem da IPU me faz lembrar a flor que nasce
do asfalto do poeta Drummond. A IPU poderia sequer ter nascido! Surge de um
processo (no bojo dos anos 50 aos anos 70) de duras perseguições e expulsões
por parte de setores fundamentalistas e sectários no seio do presbiterianismo
brasileiro contra lideranças e comunidades que atrelavam a fé cristã ao
compromisso com justiça social e à caminhada ecumênica. O autoritarismo
eclesiástico antecipou o apoio do presbiterianismo hegemônico à ditadura
militar. As pessoas perseguidas e expulsas naquele contexto, sustentadas pelo
Espírito Santo, em meio a lágrimas e resistência, formaram a IPU. Esta história
é muito bem contada pelo Rev. João Dias de Araújo em seu livro Inquisição sem
Fogueiras, um documento histórico da maior importância sobre o protestantismo
brasileiro (escrevo este texto tendo à vista uma edição deste livro com capa
ilustrada pela atual moderadora do Conselho Coordenador da IPU nacional, Anita
Wright, ilustração de beleza contundente e instigante).
Em Inquisição sem Fogueiras, encontra-se uma
carta escrita por Rubem Alves (datada de 15/09/70), à época pastor
presbiteriano que se desligava da IPB (Igreja Presbiteriana do Brasil), que
expressa com poética teologia o significado da situação em que nasce a IPU e os
desafios que em boa medida ainda são os nossos. Como “a fidelidade é uma
virtude da memória” (André Sponville), compartilho alguns trechos desta carta:
Sempre entendi que o Evangelho é um chamado à
liberdade. Foi através de um evento libertador, o Êxodo, que a comunidade da fé
chegou a conhecer o seu Deus. E a Bíblia toda é a história da luta de Deus que
quer que os homens sejam livres, contra os próprios homens que preferem a
domesticação, a escravidão e a idolatria. Culmina esta história com o advento
do Senhor Jesus que é, a um só tempo, o homem livre e o Deus que liberta. Fé,
portanto, é liberdade. É abertura ao futuro. É a confiança de ‘deixar para trás
as coisas que já ficaram para trás’, para lançar-se com Abraão para um futuro
novo. Por isso fé é vida. O ato de viver é um permanente transferir-se do
presente para um futuro imediato. [...]
Estou convicto, teologicamente, que a
comunidade de fé já emigrou. Nenhuma estrutura legal e de poder pode contê-la,
ou domesticá-la. Assim como no Êxodo ela abandonou as panelas de carne do Egito
para peregrinar no deserto, assim como os profetas abandonaram e desprezaram
toda a estrutura oficial, para viver espalhada, escondida, incógnita no mundo.
O amor e a verdade freqüentemente nos obrigam a emigrar. Abraão emigrou: por fé
e amor. Também os profetas emigraram por fé e amor para fora das instituições
eclesiásticas reconhecidas. E Jesus? Emigrante permanente: deslocou-se da
interioridade protegida de uma instituição toda poderosa para um deserto de
incertezas. A vocação pela liberdade é a vocação para emigrar. Daí a afirmação
neo-testamentária de que não temos casa ou terra permanente. Vivemos pela
esperança de algo novo. Se o Novo Testamento está certo, o ‘Espírito se
encontra onde se encontra a liberdade’[...] (Alves apud Araújo, 1985,
p.98-99)
Outro símbolo desta história de resistência,
voz profética e cooperação ecumênica com vistas à defesa dos direitos humanos é
o testemunho do rev. Jaime Wright, que junto com o arcebispo Dom Paulo Evaristo
Arns, desenvolveu o projeto Brasil Nunca Mais, trabalho de extrema relevância
no que diz respeito à denuncia das terríveis injustiças e torturas cometidas nos porões da ditadura. Este material,
inclusive, serviu de base para a Comissão da Verdade, e tem uma importância
histórica imensa a fim de que o esquecimento não sufoque uma memória necessária
à rejeição da barbárie e ao estabelecimento de balizas civilizatórias mínimas
no nosso país. Jaime Wright, o pastor dos torturados é o título de um
livro escrito pelo Rev. Derval Dasílio, que trata cuidadosamente deste
testemunho que começa com a perda do irmão Paulo Wright (presbítero e deputado
estadual cassado), desaparecido em meio às perseguições do regime militar.
Importante dizer que estes e outros resgates
históricos de testemunhos de homens e mulheres e comunidades que formaram a IPU
não estão e nem devem ficar no campo do saudosismo. Assim como nossos
Princípios de Fé e Ordem e demais documentos fundantes não podem ficar apenas
no papel. Pelo contrário, servem de
baliza para percebermos a coerência e ressonância de nossas origens em nossas
práticas e Pronunciamentos mais recentes onde nos posicionamos, a partir do
legado bíblico centrado em Jesus e herança reformada, em favor dos direitos
humanos e do Estado Democrático de Direito, da laicidade do Estado, da justiça
social, contra toda e qualquer forma de guerra (referência ao apoio de
lideranças que se intitulam evangélicas a ataques de Israel à palestinos na
Faixa de Gaza, em 2014), contra o sexismo, homofobia, racismo e intolerância
religiosa. O desafio é amplificar o alcance deste modo de pensar e viver a fé
cristã no conjunto da sociedade brasileira, bem como trabalhar de forma
continuada e criativa estes e outros temas candentes através da educação cristã
e comunicação da IPU.
Entre os traços mais marcantes da IPU estão a
ênfase na diaconia e o ecumenismo. Diaconia enquanto expressão da fé através do
serviço de promoção humana e justiça no contexto onde as Igrejas estão
inseridas. É comum nas Igrejas locais da IPU o desenvolvimento de ações e
projetos de caráter diaconal. Já o ecumenismo, entendido como busca da unidade
na diversidade entre cristãos (ãs), passa pelo cultivo de uma espiritualidade
do respeito à diferença, pelo reconhecimento de que não somos “donos da
verdade” (ainda que reconheçamos a verdade em Jesus, sua grandeza extrapola
nossos limites e finitude, estamos sempre em busca da verdade nEle e com Ele,
inclusive no encontro com o outro).
Seja em momentos de celebração, como na Semana
de Oração pela Unidade Cristã, seja na participação em organismos ecumênicos
(CONIC, AIPRAL e CMI, por exemplo), nossa perspectiva ecumênica volta-se para a
defesa da vida e da Terra, nossa Casa Comum. O que implica assumir, por vezes,
disputas em meio a realidades de negação do humano e da natureza. O ecumenismo
é também uma “escola” para o diálogo interreligioso, concordando com Hans Küng
que “sem paz entre as religiões não haverá paz no mundo”. Não poderia deixar de
citar a participação da IPU na Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) que,
há 45 anos, realiza um trabalho muito significativo de articulação, formação e
apoio a projetos junto às mais diversas organizações populares e movimentos
sociais voltados à defesa de direitos.
Penso que os maiores desafios da IPU hoje estão
no campo da evangelização e da missão. Se por um lado rejeitamos o
proselitismo, a concorrência por “almas” no mercado religioso, o utilitarismo focado
no crescimento numérico e institucional, por outro, cada vez mais se reconhece
a necessidade de renovar a paixão evangelística e missionária. Com “humilde
ousadia” e “esperança solidária” está diante de nós a urgente tarefa de
propagar a fé que age por meio do amor, revitalizar e formar novas comunidades
que propiciem às pessoas um espaço de acolhida, comunhão, cultivo sadio da
espiritualidade, aprendizado e serviço. Há que se superar a dicotomia
evangelização x humanização, integrar palavra e ação, evangelizar humanizando e
humanizar evangelizando.
Articular cada vez mais diaconia e
proclamação/testemunho, afinal em Jesus não havia estas fragmentações. Perceber
que nossa visão ecumênica não interdita a evangelização, mas sim nos chama a
pensá-la e praticá-la sem perder de vista o compromisso com a unidade cristã, o
diálogo e a não-violência, o “Reino de Deus como horizonte de Vida” (Simei
Monteiro). Há que se praticar uma compreensão de missão integral e libertadora,
na qual se busque uma dinâmica sincronia dos múltiplos aspectos missionários
(proclamação/testemunho, diaconia, ensino, comunhão, liturgia), em submissão ao
sopro do Espírito Santo. Bom lembrar o que nos ensina uma vasta tradição a
respeito da Missão de Deus: a Igreja é chamada a ser um instrumento através do
qual o Deus Triúno realiza sua missão de curar, reconciliar, gerar vida plena e
salvação.
Desde a infância caminho na IPU, tendo por
Igreja local a IPU de Itapagipe. Já passei por várias fases e descobertas.
Tenho um profundo sentimento de gratidão a Deus por esta Igreja e caminhada.
Junto com a experiência de fé e aprendizados, há laços de fraternura e cuidado
que me antecedem e acompanham. Na IPU de Itapagipe, meus avós maternos (Edy e
Jason Amorim) foram abraçados ainda na década de 60 quando vieram com seus
cinco filhos do interior da Bahia para Salvador. Ali, nos tempos de ministério
do pastor Enoch Sena e sua esposa Jane Souza, minha família encontrou uma
comunidade de adoração, apoio, educação cristã para as crianças, onde puderam
cultivar o Evangelho e servir a Deus.
Ali meus pais (Augusto e Solange Amorim Cunha) se casaram, conheci minha
esposa (Ademária Araújo), batizamos nossos filhos (Pedro e Sara), aceitei o
chamado ao presbiterado e, agora, prossigo no estudo da teologia com vistas ao
pastorado.
Tenho sido profundamente edificado pelos irmãos
e irmãs daquela Igreja (Itapagipe) ao longo destes anos. A fidelidade e
testemunho de pessoas como a presbítera Jedídlia Oliveira, presente desde a
formação da Igreja até hoje, que menciono como símbolo de tantas pessoas que
fazem parte daquela história. Na juventude, contei com o pastoreio do querido
Rev. Áureo Bispo dos Santos, um dos fundadores da IPU, que descortinou para mim
e outros jovens daquela época o sentido libertador do Evangelho e as riquezas
do modo de ser Igreja da IPU. Naquele período que iniciou minha paixão
consciente pelo legado de Jesus e pela IPU. Rev. Áureo Bispo que me levou à
teologia de Richard Shaull e João Dias de Araújo, com quem tive várias e
preciosas oportunidades de conviver e aprender. Era sempre uma satisfação
encontrá-lo acompanhado pela sua querida esposa, d. Ithamar Bueno. A presbítera
Aguinelza Araújo também teve uma imensa importância na minha formação cristã ao
desempenhar um papel de liderança entre os jovens e me proporcionar um
constante trânsito no ITEBA (Instituto de Teologia da Bahia), participar de
encontros das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica), dos
vários Gritos dos Excluídos, servir na Associação Comunitária Quilombo
Zeferina, na periferia de Salvador, e outras andanças.
A partir de Itapagipe vieram
as atividades da Federação Baiana de Jovens, os Encontros Regionais e
Nacionais, as Assembleias. Oportunidades diversas de atuar e reconhecer que a
IPU tem suas falhas, contradições, limites, mas também suas significativas
potencialidades, realizações e belezas. Atualmente vejo, sem a pretensão de
exaurir estas iluminuras, sinais de esperança e renovo entre irmãos(ãs) e
comunidades: o carisma missionário do Rev. Luiz Pereira (atualmente na IPU de
Caetité), a pastoral libertária e afetuosa do Rev. Cláudio Márcio Rebouças
(pastor da IPU de Muritiba e moderador do Presbitério Salvador), o pastoreio
diaconal e profético da Reva. Sônia Mota (Diretora Executiva da CESE), a produção
poético-musical-teológica do Rev. Daniel do Amaral (IPU de Brasília), o esmero
na produção teológica dos reverendos Francisco Leite e Cláudio da Chaga, o
trabalho de comunicação do seminarista Guilherme Freitas, a representação jovem
e feminina da Raíssa Brasil (representante da IPU) junto ao CMIR – Comunhão
Mundial de Igrejas Reformadas, o engajamento social do jovem seminarista Pablo
Calles.
Que a IPU continue
desabrochando, sobretudo nestes tempos sombrios, como a flor do poeta Drummond,
que “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”!
Que a Trindade nos proteja e
ajude.
Vamos de mãos dadas!
Referências bibliografias
ARAÚJO, João Dias de. Inquisição sem
fogueiras: vinte anos de história da Igreja presbiteriana Unida do Brasil.
Rio de Janeiro: ISER, 1985.
DASILIO, Derval. Jaime Wright: o pastor
dos torturados. Rio de Janeiro: Metanoia, 2012.
Reflexão importante e pertinente aos dias atuais. Esse povo que tem Fé de Fé, vive em pé, segue em frente, vive em Paz. "Seu Lobo". Deus te abençoe Augusto Jr.
ResponderExcluirSigamos juntos! Avante!
ExcluirSigo pensando uma reflexão destas precisa se tornar vários sermões aos nossos eclesiandos.
ResponderExcluirMuito boa, mesmo! Deus seja conosco!
Avante! Há braços!
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