segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Até Quando?

“Vamos amigo lute
Vamos amigo lute
Vamos amigo lute
Vamos amigo ajude, se não
A gente acaba perdendo o que já conquistou
A gente acaba perdendo o que já conquistou

Vamos levante lute
Vamos levante ajude
Vamos levante grite
Vamos levante agora
Que a vida não parou
A vida não para aqui
A luta não acabou
E nem acabará
Só quando a liberdade raiar
Só quando a liberdade raiar”. (Edson Gomes)

Salta aos olhos de qualquer observador por mais desatento que seja o caos social em que nos encontramos, onde o modelo econômico capitalista-opressor tem excluído uma grande maioria de habitantes desta aldeia global, na luta de um lugar ao sol. Porém, sabe-se que humano e sociedade transformam-se a cada momento por interesses diversificados. Isto é, o humano é histórico e possui sua singularidade e ao mesmo tempo é “um ser aberto, em construção, inacabado” (Leonardo Boff).

Diante disso, a história nos mostra que muito sangue já foi derramado por motivos político-religioso-econômico de grupos que não abriam mão do poder que animalizava o humano em todas as dimensões de sua existência. Entretanto, quanto sangue ainda será derramado? Até quando?

Existem duas divindades gregas desafiadoras à nossa vivência cotidiana. A saber: Apolo (regra, ordem) e Dionísio (festa, celebração, desordem). Penso que essas duas dimensões são necessárias para o nosso viver social. Contudo, o que controlará as nossas ações nesta caminhada? Ou seja, como saberemos quando obedecermos ou não? Quando a desordem será necessária?

Acredito que a luta pela justiça e a dignidade humana devem trazer motivação a nossa caminhada. É certo que muitos perguntarão: o que é justiça e ou para quem? O que está sendo chamado de dignidade humana? No entanto, olho para o lado e me pergunto, até quando?

Em uma das canções de Nengo Vieira (cantor de reggae do recôncavo baiano), ele diz: “Roda tudo que ele poderia ter /fora o mundo que ele tem pra merecer /com o trabalho, com a dureza da servidão /sobrevive permanente na escravidão /perde a vida pra poder ganhar o pão /ninguém liga se ele vai mudar ou não”. Surge então a pergunta, quem está se preocupando com o marginalizado? Quem continua nas ruas empoeiradas e sem direito ao pão nosso de cada dia? Essa pessoas estão sendo vistas ou são invisíveis?

De um modo geral todos nós estamos muito ocupados com o trabalho, com a universidade, família, grupos sociais ( sindicato, igreja, escola...) que não podemos parar para atender o outro. Desta maneira, o texto bíblico que fala do bom samaritano traz uma contribuição significativa nesta discussão, onde um homem tinha sido assaltado e deixado no caminho com muitos ferimentos precisando de ajuda. Nesta narrativa, Jesus de Nazaré mostra que um sacerdote e um levita passam pelo samaritano e não o ajudam.

No entanto, na perspectiva da lei judaica eles estavam corretos. Pois, se tocassem naquele homem não poderiam cumprir suas obrigações no templo (estariam impuros). Porém, o Cristo lança um desafio: o que é mais importante, a vida ou a lei? De modo que o ferido e marginalizado foi acolhido por um samaritano que era inimigo dos judeus.

Logo, podemos nos perguntar: a lei não seria estabelecida para a manutenção da vida, da justiça e do bem comum? Não é novidade que em muitos casos a lei tem sido usada por interesse dos que estão no poder para oprimir e manipular o humano (sobretudo índios (as), negros (as), homossexuais, mulheres...). Daí, quem é capaz de escutar este clamor? Nengo continua: “Trabalhador com muito amor vive na paz de Deus /na luz do Senhor que alivia a dor que é forte demais /mas a pureza e a beleza do seu coração/é mais que tudo, que qualquer dinheiro da grande nação”

Desta maneira, fica o desafio diante de cada um de nós que vivemos “ nesta casa comum”(Boff), e renasce a pergunta: até quando? Políticos desviarão o dinheiro público e continurão no poder. Até quando? Crianças nas ruas a mendigar as migalhas dos detentores do capital. Até quando? Mulheres estarão em um lugar de submissão diante do homem, serão espancadas e receberão menos no mercado de trabalho. Até quando? Homens e mulheres por terem uma opção sexual diferenciada irão morrer e ou sofrerem violência físico-moral. Até quando? Os negros(as) estarão associados a imagem do diabólico, do desonesto, do malandro? Até quando? Nordestinos serão sinônimo de preguiçosos, mão de obra barata e analfabetos no sul e suldeste do Brasil. Até quando? Índios e quilombolas ficarão sem sua terra, sem chão. Até quando? Líderes religiosos abusaram de crianças e viverão a simonia. Até quando? Idosos não mais curtirão as praças, devido ao problema da violência e a marginalização dos cabelos brancos. Até quando? Militares não cumprirão o seu papel social e ficará difícil perceber quem é bandido e quem é policial. Até quando? Bandidos invadirão nossas casas, levarão o nosso dinheiro e ferirão nossa família. Até quando? Os traficantes ficarão mais poderosos e as mães dos usuários chorarão pelo seu filho que foram para um caminho que ...terá volta? Quantos ainda vão morrer? Quanta lágrima será derramada?

Uma coisa é certa: é evidente que as questões socias não são simples de serem melhoradas e ou transformadas. Porém, essas questões ainda incomodam você? Neste jogo da vida, neste campo de batalha, o humano e sua complexidade caminha pra onde?

Enquanto isso, Nengo continua: “ Roda, roda, roda ô pião/ na roda da vida”.

Diante disso, onde estão os messias do século XXI? Pois, pensar a diversidade humana é perceber antes de qualquer coisa que o humano é um ser social e que a questão ontológica necessariamente passa pela dimensão da relação com o outro. Ou seja, de uma forma ou de outra como afirmou Martin Luther King: “ o que afeta um diretamente, afeta a todos indiretamente.”

A história nos mostra que com a “descoberta” do novo mundo, o europeu depara-se com o diferente, com o desconhecido que era tratado como selvagem, imaturo e decaído. Desta forma, índios e negros eram tratados como objeto que proporcionava lucro aos seus senhores. Como eles não tinham alma tudo poderia ser feito com eles, desde a mão de obra, ao prazer sexual. Logo, a diversidade humana possui suas dimensões de encantamento e apavoramento.

Sendo assim, Soren Kierkegaard afirma: A vida só pode ser entendida olhando-se para trás. Mas só pode ser vivida olhando-se para frente. E, é diante das adversidades que todos nós somos desafiados à caminhada em favor da vida e do bem comum. Descobrindo formas de lutar contra o capitalismo que exclui e gera extrema pobreza para aqueles que buscam um lugar ao sol. Pois, segundo Foucault: “ Devemos não somente nos defender, mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente enquanto identidades, mas enquanto força criativa.” Ou seja, agir na resistência, em uma mimese criativa sempre duvidando e questionando aquilo que está a nossa volta.

Penso que necessariamente vivemos um momento em que precisamos resgatar a figura do messias libertador e agitador das estruturas opressoras da nossa sociedade. No entanto, nos perguntamos? Eles ainda existem? Onde estão? Na academia ou nas esquinas do cotidiano? É claro que se torna relevante nos perguntarmos qual o nosso papel na sociedade?

Chegou o momento definitivamente de sairmos da caverna pela luz da razão e do conhecimento. O que necessitamos enquanto comunidade é de um novo olhar para nós mesmos e para o outro. Logo nos perguntarmos estamos a serviço de quem?

A história nos mostra paradigmas que nos desafiam e nos mostram que os sinais de metamorfose ocorrem a partir de uma e ou poucas pessoas. Vamos trazer a memória Antônio Conselheiro no sertão da Bahia no Brasil República, Zumbi dos palmares nos quilombos em Alagoas contra a escravidão, Moisés no antigo testamento que resgata os hebreus das mãos de faraó, Rosa Parks contra a segregação racial nos Estados Unidos, D. Helder Câmara contra a ditadura militar e a favor da justiça social, Irmã Dulce e sua espiritualidade do serviço e do cuidado com o próximo, Gandhi e a luta pacífica contra o imperialismo britânico na Índia, Bob Marley através de suas canções em prol da emancipação política e mental de seu povo e tantos outros e outras.

Desta forma, estamos diante de embates ontológicos onde nos perguntamos: é possível outro mundo? Outra realidade? Outro modelo econômico? Uma coisa fica muito clara diante de nossos olhos: é que precisamos resgatar essas figuras messiânicas em nosso século XXI. Vivemos um momento de crise onde necessitamos (clamamos), por mudanças, por justiça social. Somos desafiados a sentar-se a mesa comum para estabelecermos um diálogo com o outro que é diferente, mas, é a partir da relação com o outro que descobrimos quem “somos.”

Urge então, um novo olhar e uma nova práxis libertadora em defesa da vida em todas as suas dimensões. E que possamos ver homens e mulheres acreditarem em outro modelo (outra realidade), para suas jornadas. Que o nosso caminho em sua totalidade sinalize outras possibilidades e que a utópica sociedade alternativa nos desafie e encoraje à nossa missão e ou função social. Pois, como afirmou Mahatma Gandhi: “Não sou um utópico - sou um idealista prático”.

Fraternalmente, Rev. Cláudio Márcio

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Diálogo Inter-religioso


“O universo é constituído por uma imensa teia de relações de tal forma que cada um vive pelo outro, para o outro e com o outro.” (Leonardo Boff)

Na antropologia, o treinamento do olhar é um dos exercícios mais importantes. Saber olhar e discernir que cada cultura tem sua lógica própria. E, é nesse parâmetro que se entende a antropologia como uma forma de conhecimento sobre a diversidade cultural, isto é, a busca de respostas para refletir o que somos a partir do espelho fornecido pelo outro. Uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais se alarga as múltiplas possibilidades de sentir, agir e refletir. Dessa forma “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem que objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade”.

A ideia de que todos estão juntos na mesma casa é indispensável para um diálogo inter- religioso. Uma vez que precisamos vencer a visão etnocêntrica que temos e redirecionar o nosso olhar para a diversidade (pois, aí se encontra a beleza). Daí, Geertz afirma que a humanidade deve ser vista como um produto de construções simbólicas complexas, procurando então, “desvendar o tecido simbólico”. Ou seja, os códigos, as regras, os significados e as simbologias elaborados dentro de um sistema social e que marcam os modos de ver o mundo e agir nele.

Assim, pensar a existência do humano nesta aldeia global é uma experiência extraordinária, seja na sociedade “primitiva” ou na “complexa”. O humano e sua relação paradoxal que encanta por sua diversidade cultural e sua capacidade de criar e recriar seu meio social, de se conhecer através do outro. Isto é, ao mesmo tempo em que expressa força, capacidade... sinaliza fragilidade, pequenez e submissão.

No entanto, durante muito tempo o diferente trouxe pavor, inquietações e através de experiências e vivências, o humano, a sociedade e consequentemente as identidades, foram se transformando ao longo de um processo histórico-social-cultural que é lento, porém, constante.

Sendo assim, Stuart Hall discute a identidade e suas transformações sociais e aponta três concepções de identidade, a saber: o sujeito do iluminismo (dotado de capacidades da razão, o ser humano centro da história), o sujeito sociológico (identidade formada na relação entre o interior e o exterior, mundo pessoal e público), sujeito pós-moderno (identidade fragmentada). Ou seja, várias identidades e às vezes contraditórias. Desta forma, a identidade é formada na história e está sempre aberta, em andamento, sendo construída e reconstruída por diversos fatores.

No entanto, precisa-se perguntar: o que cada religião fala sobre Deus? Rubem Alves afirma que “a religião pode ser usada para libertar ou escravizar depende de quem manipula os símbolos do Sagrado”. Ou seja, a fonte maior da vida se esgota em uma religião? (Deus é nosso?) Não seria muita arrogância pensar desta maneira? Por que o demônio sempre está no outro? Porque temos dificuldades em enxergamos nossas mazelas?

Evidentemente que em uma casa não existe uniformidade de pensamento, porém, a parceria, o respeito devem ser nossos paradigmas em todo tempo em que vivermos. Precisamos diz Gandhi: despertar o Sagrado que há dentro de nós. Assim, estaremos maduros o suficiente para sentarmos a mesa da fraternidade. Pois, ao encontramos na narrativa bíblica em Gênesis que o humano é imagem e semelhança do seu criador, entendemos que o outro também revela Deus, e aí é que mora a beleza do Criador, que em cada cultura e em cada momento da história, Ele se manifesta de uma forma diferente. Mas sempre disposto a cuidar da sua própria CASA (O MUNDO) com o humano em uma relação de amizade e parceria.

Enfim, acredito que Deus nos chama para um momento novo... Para Pierre Bourdieu, precisamos acreditar no jogo, vale à pena jogar (ILUSIO). Pois, o que é o humano? Poderíamos sinalizar como ser em constante construção e cheio de dimensões: aberto e fechado; com amor e ódio; com paz e violência; justo e injusto; grato e ingrato; Na verdade, a resposta antropológica é sempre de abertura pelo fato de entender que o humano é imprevisível, assim como a vida e a sociedade.

Logo, este é o momento de percebermos a beleza e a grandeza que existem na diversidade e singularidade de cada povo e cultura. Pois, aquilo que me é estranho de onde olho, também o é para o outro de onde me olha (encantamento e amedrontamento são mútuos). Desta maneira, não seria este um dos mais difíceis e significativos legados da antropologia: o diálogo cultural entre o singular e o plural em cada esquina dessa chamada aldeia global?

Penso que há uma necessidade profunda de refletirmos através de uma perspectiva teológica aqui no recôncavo da Bahia. Lugar de tanta riqueza em suas tradições... Tanta diversidade cultural... Qual seria o papel da teologia neste contexto de identidades múltiplas?

Existe uma palavra grega (OIKOUMENE), que expressa um pouco do meu desejo de partilhar este pequeno texto. Pois, a tradução desta palavra seria (todos habitando no mesmo teto). Isto é, todos estão ligados e interligados, somos dependentes e interdependentes uns dos outros...

Desta maneira, é evidente que há uma força (produtiva ou não) muito grande de cada comunidade eclesiástica em cada cidade. Os líderes religiosos (todos/as) exercem uma influência muito grande sobre seus seguidores. Porém, a pergunta que precisa ser feita é: de que lado a religião está? Qual a sua função social? Assim, Durkheim sinaliza que: “Não existe religião alguma que seja falsa. Todas elas respondem de formas diferentes a condições dadas de existência.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVES, Rubem. O que é religião? 5° edição. São Paulo, Editora Loyola, 2003.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. 3. ed. São Paulo:bMartins Fontes, 2003.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomás Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 6. ed. Rio de Janeiro. DP&A, 2001. 103 p. Título original: The question of cultural identity.

LAPLANTINE, François; A Pré-história da Antropologia: a descoberta das diferenças pelos viajantes do século XVI e a dupla resposta ideológica dada daquela época até nossos dias, in. LAPLANTINE, FRANÇOIS. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997. P.37-73.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Resenha: O Suicídio de Durkheim

DURKHEIM, Émile. O Suicídio. São Paulo, Martin Claret, 2008.

Todos nós caminhamos numa linda passarela de uma aquarela como afirmou Toquinho, mas muitos apenas percorrem a trajetória e aceitam passivamente suas cores. Nada pintam, não desenham, não rabiscam, sem sequer apagam. São indivíduos que lêem o mundo na superficialidade, na pura e vaga aparência, e por isso mesmo tornam-se alienados, submissos, incapazes de transformar sua própria realidade. Por outro lado, existem pessoas que numa folha qualquer desenham o sol amarelo e, a partir daí constroem castelos e com um simples compasso, em um giro, transformam o mundo. Emile Durkheim (pai da sociologia) está classificado nesse último grupo, visto que suas pesquisas mudaram o conceito de se pensar o social na sua época.

Com efeito, em sua obra O Suicídio aponta inicialmente que definir o suicídio seria supérfluo, visto que as palavras carregam sempre um teor ambíguo e analisá-lo cientificamente mediante um olhar aparente, ou seja, do senso comum, sem buscar a sua essência, geraria profundas confusões. Daí, a necessidade de comparar para explicar. “Assim, uma investigação científica só pode atingir o seu objetivo se se refere a fatos comparáveis, e tem tanto mais probabilidade de êxito quanto mais certa esteja de reunir todos os que podem ser comparados de maneira eficaz” (p.11). Lembremos que Durkheim vivia no contexto onde o positivismo era o método utilizado para se fazer ciência. Dessa forma, a comparação era a demonstração para validar, apresentar como verdade, as provas colocadas pelas ciências, nesse caso as ciências sociais. Além disso, os fatos sociais deveriam ser tratados como coisas, como uma realidade externa aos indivíduos, rompendo com conceitos preconcebidos e então investigando as relações causa/efeito e regularidades para que se descubram leis e regras de ação para o futuro.

Sua grande relevância para os estudos sociológicos foi demonstrar que o suicídio para além de uma ação individual é fruto de uma concepção social, uma questão que envolve o coletivo. Nesse sentido, ainda que os humanos vejam a si mesmos como indivíduos que têm liberdade de arbítrio e de escolha, seus comportamentos são frequentemente padronizados e moldados socialmente. O suicídio seria dessa forma, toda morte que resulta mediada ou imediatamente de um ato positivo ou negativo, realizado pela própria vítima, porém, tomando como ponto mediador o fator externo, que conforme o autor estaria muito mais definindo as causas de morte do que a própria ação individual. Cabe ressaltar que a causa atribuída anteriormente ao suicídio era derivada da subjetividade. Ou seja, teorias psicológicas que refletiam sobre o medo, a culpa, a frustração... Entretanto, Émile Durkheim, tentou mostrar que esses fatores psicológicos também eram construídos no viver social e por isso mesmo o suicídio não poderia ser pensado nos aspectos psicológicos isolados do contexto. Isto é, teorias sociológicas buscam a explicação na influência das pressões sociais e culturais sobre o indivíduo. Daí, o autor defende que “cada sociedade tem, portanto, em cada momento de sua história, uma aptidão definida para o suicídio. (p.19)

Desta maneira, as causas de morte situam-se muito mais fora de nós, e, apesar dos distintos interesses envolvidos em cada ato suicida, o ponto comum centra-se no fato de que quando a vítima, no momento em que comete o ato que deve dar cabo de seus dias, sabe com toda a certeza o que normalmente deve dele resultar. Dessa forma, o suicídio pode ser um ato de coragem, de devoção, de melancolia e até mesmo de desespero, contudo, todos esses fatores estão associados de certa forma, ao grau de integração da sociedade, seja no âmbito religioso, familiar e político.

Deste modo, o objetivo de Durkheim era buscar as condições de que depende esse fato distinto, o qual chamamos de taxa social de suicídio. Logo, o sociólogo deve procurar as causas por meio das quais é possível agir, não sobre os indivíduos isoladamente, mas sobre o grupo. Portanto, sua análise parte dos fenômenos (causas extras sociais) sob a ótica da generalidade, da natureza das causas sociais (diversos suicídios) e por fim da tendência coletiva (suas relações com outros fatos sociais).

Outro destaque importante apresentado pelo autor foi a lógica do determinismo racial e geográfico sobre as margens do suicídio. No primeiro aspecto, Durkheim desenvolve a ideia de que a teoria que faz da raça um fator importante de tendência para o suicídio, a qual admite que tal ato é hereditário, orgânico, encontra-se equivocada, pois o suicídio não é hereditário, apenas o temperamento adquirido pode predispor o indivíduo a cometer um suicídio, mas é o meio que influenciará ou não a cartada final. Semelhantemente, no que tange ao aspecto clima, não há uma estação mais favorável ao suicídio do que a outra, sobretudo, o clima não oferece influência alguma. Logo, a influência do calor ou do frio nada prova, pois, o suicídio atinge o valor máximo nos dias em que a atividade social é máxima, ou seja, as variações mensais do suicídio dependem, portanto, de causas sociais.

Como determinar as causas? Uma vez que as razões presumidas dos suicídios são suspeitas? Daí, o único método praticável consiste em classificar os suicídios segundo um conjunto de outros acontecimentos sociais concomitantes.

Desta maneira, o autor sinaliza que no protestantismo (devido à liberdade), há mais suicídio do que no catolicismo, entre o casal o homem comete mais do que a mulher (devido á maior quantidade de relacionamentos). Partindo desse pressuposto, para ele não há suicídio, e sim suicídios, uma vez que o suicídio é sempre o ato de um homem que prefere a morte em detrimento da vida. Porém, as causas podem ser diferentes. Mas, não basta demonstrar que essas diferenças existem, e sim identificar em que consistem.

Desta forma, Durkheim apresenta o suicídio como um fenômeno coletivo. Logo, o suicídio egoísta que se caracteriza pela melancolia (não estou nem aí para a sociedade/ sente-se inútil, isolado), o suicídio altruísta que se caracteriza pela renúncia ativa/ heroísmo (em perigo, impelido por um determinado sentimento) e por fim o suicídio anômico que se caracteriza pela fadiga exasperada (processo de turbulência muito grande as regras são suspensas/ medo do dia de amanhã).

É em meio a tal constatação que a coesão, a vitalidade das instituições, a intensidade da solidariedade manifesta no grupo religioso, os laços que unem a família, os indivíduos e a sociedade política são vistos como instrumentos de contribuição para evitar o suicídio. O suicídio altruísta, por exemplo, (altamente interessado à sociedade propondo-se a morrer por ela) é visto como um dever que se não for cumprido, é punido com desonra, perda da estima pública ou por castigos religiosos. É a elevada integração social dos indivíduos que levam eles a cometerem este tipo de suicídio. Não é a toa que muitos jovens, recém-casados, repletos de vigor perante a vida, se colocaram à disposição na Primeira Guerra Mundial, lançados diante do amor à pátria, filhos do nacionalismo ensinado severamente nas escolas desde os primeiros anos de estudo.

Da mesma forma ocorre com o suicídio anômico (ausência de conforto e segurança, tentativa de manter certa estabilidade). Este se deve a um estado de desregramento social no qual as normas estão ausentes ou perderam o respeito. Ou seja, o sentimento de interdependência se amortece, as relações são precárias e as regras são indefinidas e vagas.

É por isso que Durkheim afirma que as particularidades individuais não explicam a taxa social do suicídio. Os fatos mais diversos e mesmo os mais contraditórios da vida podem servir igualmente de pretexto para o suicídio, nenhum deles é causa especifica, mas todos estão ligados à fatores construídos e difundidos socialmente. Logo, a taxa social dos suicídios só se pode explicar sociologicamente e a tendência para esta prática nasce da constituição moral do grupo.

A alternativa sinalizada seria que só estaremos imunizados contra o suicídio se estivermos socializados. Porém, não é a sociedade política (distante do indivíduo), nem a religiosa (socialização que se dá retirando a liberdade de pensar), nem a familiar (solteiros e casados cometem suicídio). Mas sim, uma sociedade coesa, onde os ideais morais sejam constantemente revividos, relembrados, e acima de tudo uma sociedade em que os indivíduos assumam seu papel de colaborador, uns com os outros, se conformando com as desigualdades que são naturais e trabalhando de forma solidária, cada qual desempenhando seu papel social, inclusive as instituições.

O clássico de Émile Durkheim, O suicídio mostra a relevância do método sociológico. Sabe-se que cada autor é fruto do seu tempo. Seu trabalho foi paradigma de conexão de teorias e informações, espantou as pessoas de seu momento por sua inovação na fabricação de trabalhos sociológicos e, sobretudo científicos.

No entanto, evidentemente que não comporta em nossa sociedade a interpretação de que as mulheres divorciadas se matam menos que os homens (por necessidades sexuais) e ou que a vida mental da mulher é menos desenvolvida que a do gênero masculino. Também a “ordem” positivista de Dukheim não se encaixa em nossos dias, onde é através dos movimentos sociais que encontramos também o processo de emancipação dos direitos humanos. Aliás, o que seria ordem? É aceitar a subjugação ditada por um determinado grupo? Acredito que não! Naturalizar as desigualdades sociais é alienar-se perante uma estrutura fundamentada na existência eterna de uma classe dominante sempre exploradora e de uma classe dominada fiel à sua responsabilidade social. Por outro lado, a influência do evolucionismo é também muito evidente em sua obra. Logo, pensar no “civilizado” e ou superior seria etnocêntrico, uma vez que entre sociedades diferentes uma demanda significativa em nossos dias é a igualdade e o respeito às diferenças sócio-culturais.

A ciência é essa construção e reconstrução de teorias. Na verdade, prática e teoria se alimentam e retroalimentam em um movimento dialógico, e assim novos métodos também são elaborados para responder às demandas da compreensão do real. Evidente que hoje, com a sociologia crítica, novas concepções são destacadas, mas nem por isso o trabalho de Durkheim deve ser desconsiderado. Ele fez chover... mas com dois riscos também podemos fazer um guarda-chuva.