quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

O que incomoda tanto no samba-enredo da Mangueira?



Por: Alexandre de Jesus dos Prazeres[1]

Por estes dias, recebi de um grupo de religiosos, recolhendo assinaturas, uma petição contrária ao samba-enredo da Mangueira que será entoado no sambódromo neste ano. O desconforto estaria sendo causado por trechos do samba como o seguinte: "Eu sou da Estação Primeira de Nazaré / Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher / Moleque pelintra no buraco quente / Meu nome é Jesus da gente". O samba-enredo apresenta Jesus falando em primeira pessoa e se identificando com oprimidos e marginalizados pela sociedade: o negro, o índio, a mulher, o moleque pelintra, enfim os invisibilizados, os que sofrem.
Talvez nisto esteja uma das causas de incômodo, Jesus se identificando com quem não é benquisto nos ambientes nos quais, no geral, ricos são bajulados e pobres menosprezados. E ambientes religiosos não são isentos deste comportamento, principalmente onde é pregado que são abençoados por Deus os que possuem poder de consumo. Pois estas igrejas apresentam Deus como um deus de consumidores, que dizimam e frequentam cultos para obterem dez vezes mais condições para consumir. Quem não tem teto, roupas de grifes, carros, enfim prosperidade, não é abençoado por Deus. Como poderiam cogitar que Jesus estivesse na pele desta gente?

Quem sabe se outra causa de incômodo seja o fato do samba-enredo propor, sem pedir licença aos religiosos, sua própria cristologia. Os religiosos se sentem proprietários de Cristo, detentores dos direitos de elaborar discursos acerca dele, suas interpretações a seu respeito são as únicas aceitáveis. Neste sentido, o samba-enredo transgride, tira a cristologia dos templos e leva até ao sambódromo, remove-a das mãos dos teólogos de igreja e a põe nas mãos de uma mulher  (a compositora Manu da Cuíca), ignora os empoeirados manuais de teologia e reescreve a cristologia como samba, expressão popular da cultura brasileira.
A tal petição elaborada pelos religiosos declara que "não há Carnaval em que a Face Sagrada de Cristo não seja ultrajada, agredida, sempre em nome da 'liberdade de expressão'", menciona também a mal-interpretada encenação ocorrida no Carnaval passado, "uma escola de samba de São Paulo fez um desfile em que Nosso Senhor era derrotado pelo demônio", todavia, os reais motivos do incômodo estão declarados nos termos seguintes: "Não é por acaso que um defensor desse samba afirmou que ele é o 'mais potente, o mais subversivo ... cartão de Natal das populações vulnerabilizadas' e 'voz dos povos subalternizados (indígenas, negros, mulheres, gays, trans, etc…)'"
Incomoda ainda o fato do samba-enredo fazer alusão àqueles que elevaram o transitório à condição de eterno. Refiro-me ao título do samba-enredo, A verdade vos fará livres, que alude a uma das expressões da campanha de 2018 do atual presidente do Brasil, citação de João 8.32, identificando propostas partidárias e programa de governo com a vontade divina, elevando o humano e terreno à condição de divino e celestial, igualando o produto da mente humana à expressão dos pensamentos e sentimentos de Deus. Assim o samba-enredo, ao identificar Jesus com os excluídos e em condições de abandono, denuncia o engano da fé destes religiosos num falso Messias em quem depositam esperança para transformar o futuro, os rumos históricos do país.
Incomoda o apelo feito aos excluídos, "Favela, pega a visão, não tem futuro sem partilha/Nem Messias de arma na mão". Apelo que convida a se praticar a solidariedade, o partir do pão, a partilha das dores e das alegrias, e a saber diferenciar o Cristo de braços abertos na cruz de um Messias de mão armada.

Há questões incômodas para os religiosos neste samba-enredo, mas não são as enumeradas por eles, são principalmente as que eles se recusam a enumerar, pois revela o quão diferentes de Cristo são, não querem reconhecer, como declarou Nietzsche, que "os fariseus mataram Cristo e se apossaram da sua Igreja".



[1] Reverendo da IPU de Aracaju-SE. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe - UFS (2019). Mestre em Ciências da Religião (2013) e Bacharel em Teologia (2010) pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.

2 comentários:

  1. "os fariseus mataram o Cristo..." e continuam matando todos os dias quando menosprezam os pequenos.
    Excelente reflexão!!!

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