Por: Alexandre de Jesus dos Prazeres[1]
Por estes dias, recebi de um grupo de
religiosos, recolhendo assinaturas, uma petição contrária ao samba-enredo da
Mangueira que será entoado no sambódromo neste ano. O desconforto estaria sendo
causado por trechos do samba como o seguinte: "Eu sou da Estação Primeira de Nazaré /
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher / Moleque pelintra no buraco quente
/ Meu nome é Jesus da gente". O samba-enredo apresenta Jesus falando em
primeira pessoa e se identificando com oprimidos e marginalizados pela sociedade:
o negro, o índio, a mulher, o moleque pelintra, enfim os invisibilizados, os
que sofrem.
Talvez nisto esteja uma das causas de
incômodo, Jesus se identificando com quem não é benquisto nos ambientes nos
quais, no geral, ricos são bajulados e pobres menosprezados. E ambientes
religiosos não são isentos deste comportamento, principalmente onde é pregado
que são abençoados por Deus os que possuem poder de consumo. Pois estas igrejas
apresentam Deus como um deus de consumidores, que dizimam e frequentam cultos
para obterem dez vezes mais condições para consumir. Quem não tem teto, roupas
de grifes, carros, enfim prosperidade, não é abençoado por Deus. Como poderiam
cogitar que Jesus estivesse na pele desta gente?
Quem sabe se outra causa de incômodo seja o
fato do samba-enredo propor, sem pedir licença aos religiosos, sua própria
cristologia. Os religiosos se sentem proprietários de Cristo, detentores dos
direitos de elaborar discursos acerca dele, suas interpretações a seu respeito
são as únicas aceitáveis. Neste sentido, o samba-enredo transgride, tira a
cristologia dos templos e leva até ao sambódromo, remove-a das mãos dos
teólogos de igreja e a põe nas mãos de uma mulher (a compositora Manu da Cuíca), ignora os empoeirados
manuais de teologia e reescreve a cristologia como samba, expressão popular
da cultura brasileira.
A tal petição elaborada pelos religiosos
declara que "não há Carnaval em que a Face Sagrada de Cristo não seja
ultrajada, agredida, sempre em nome da 'liberdade de expressão'", menciona
também a mal-interpretada encenação ocorrida no Carnaval passado, "uma
escola de samba de São Paulo fez um desfile em que Nosso Senhor era derrotado
pelo demônio", todavia, os reais motivos do incômodo estão declarados nos
termos seguintes: "Não é por acaso que um defensor desse samba afirmou que
ele é o 'mais potente, o mais subversivo ... cartão de Natal das populações
vulnerabilizadas' e 'voz dos povos subalternizados (indígenas, negros,
mulheres, gays, trans, etc…)'"
Incomoda ainda o fato do samba-enredo
fazer alusão àqueles que elevaram o transitório à condição de eterno. Refiro-me
ao título do samba-enredo, A verdade vos fará livres, que alude a uma das
expressões da campanha de 2018 do atual presidente do Brasil, citação de João
8.32, identificando propostas partidárias e programa de governo com a vontade
divina, elevando o humano e terreno à condição de divino e celestial, igualando
o produto da mente humana à expressão dos pensamentos e sentimentos de Deus.
Assim o samba-enredo, ao identificar Jesus com os excluídos e em condições de
abandono, denuncia o engano da fé destes religiosos num falso Messias em quem
depositam esperança para transformar o futuro, os rumos históricos do país.
Incomoda o apelo feito aos excluídos,
"Favela, pega a visão, não tem futuro sem partilha/Nem Messias de arma na
mão". Apelo que convida a se praticar a solidariedade, o partir do pão, a
partilha das dores e das alegrias, e a saber diferenciar o Cristo de braços
abertos na cruz de um Messias de mão armada.
Há questões incômodas para os religiosos
neste samba-enredo, mas não são as enumeradas por eles, são principalmente as
que eles se recusam a enumerar, pois revela o quão diferentes de Cristo são,
não querem reconhecer, como declarou Nietzsche, que "os fariseus mataram
Cristo e se apossaram da sua Igreja".
[1]
Reverendo da IPU de
Aracaju-SE. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de
Sergipe - UFS (2019). Mestre em Ciências da Religião (2013) e Bacharel em
Teologia (2010) pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.
"os fariseus mataram o Cristo..." e continuam matando todos os dias quando menosprezam os pequenos.
ResponderExcluirExcelente reflexão!!!
Obrigado!Sigamos!
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