sábado, 23 de outubro de 2021

TÁ VENDO QUE É SÓ O SOL CHEGAR...

 

Por: Paulo Roberto[1]

Sempre gostei da ideia de escrever acerca dos finais de tarde, da sensação de encanto e afeto que me traz a retirada do sol de nosso horizonte... Não sei de dizer ao certo, mas, o que me obstruía de tal intento, quiçá, fosse o fato das minhas lembranças mais remotas acerca dos finais de tarde me trazerem uma significativa carga  de dores e tristezas, em meio as ausências geradas por uma infância pobre. Contudo, mesmo em meio aquele chão sem piso, aquelas paredes que, ainda que pintadas, não escondiam as durezas materiais da pobreza, daquele telhado revestido de telhas velhas, daqueles quartos, tal qual o quarto de despejo de Carolina de Jesus, mesmo em meio a tudo isso, consigo, agora, acessar algo tão bonito, tão palpavelmente sereno e lindo.

Recordo-me disto ao me encontrar ouvindo uma rádio de músicas antigas e, tomado por essas canções, minha memória me arrebatou, levando-me ao esforço diário de Mainha em encerar aquele chão cimentado, com um vigor e força tamanha, como se quisesse, mesmo que soubesse ser impossível, esconder a "feiúra" da nossa limitação de vida financeira.

 Ao som das canções daquela rádio que, em sua aleatoriedade, só nos permeava ainda mais de um nível de profundidade e sentimentos, me recordo de está sentado num sofá de capa verde, pernas de madeiras pretas vendo o sol invadir a casa e, num movimento quase mágico, tocar o chão da mesma, fazendo reluzir o esforço de Mainha, o que fazia com que ela olhasse para aquele chão e, como quem estivesse em estado de êxtase, dissesse sob um riso suave: "Tá vendo que é só o Sol chegar que a casa mostra seu brilho de beleza"?!.

E eu, ainda que pequeno, ali, sentado, observava tudo tão encantado e embebido ao vê a felicidade pueril e satisfeita de Mainha que, só agora consigo contornar as memórias de dor e, em meio a todo dilacerar,  vejo como tudo, mesmo que não parecesse, compunha também um cenário de alegria, felicidade, encanto, sem que, contudo, para isso, a gente precisasse está dentro de um palácio ou algo do tipo! Quando via o sorriso de Mainha, misturado as canções, cujo entendimento da minha parte era quase nenhum, mas, me traziam leveza e tranquilidade, tudo ia ganhando outro sentido, outra cor, outra perspectiva, a ponto de assaltar de nós a carga de sofrimento que nos era profunda e diária! Acho que deveria escrever sobre as tardes, o esvair do dia também tem suas belezas.

SUZART



[1] Cientista Social (UFRB) e poeta.

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