segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Jesus e o samba da Mangueira...

Sobre Jesus e o samba da Mangueira
Por Augusto Amorim Jr.

Escrevo este texto por amor ao Evangelho e ao Samba. Evangelho enquanto centro da minha fé, existência e visão de mundo. Samba enquanto símbolo e presença de minhas raízes existenciais, culturais e históricas. Escrevo também enquanto participação nos diálogos dentro e fora das Igrejas a respeito do Samba da Estação Primeira de Mangueira deste ano, intitulado A Verdade vos fará livre.

O Deus que se revela na Bíblia não é um Deus distante, que apenas observa de longe os dramas humanos, nem um Deus que se coloca do lado dos poderosos e opressores. Desde o Antigo Testamento, Deus se revela como Libertador do seu povo, Deus que ouve os clamores e conhece os sofrimentos de um povo escravizado e não fica indiferente, mas desce para libertá-lo da opressão e levá-lo a uma terra prometida (onde “corre leite e mel”), onde deveriam bem viver a liberdade numa sociedade marcada pela justiça e fraternidade (Ex 3:7-8, Ex 22.20, Ex 23: 1-9). Para isto chama parteiras (mulheres do povo explorado e sofrido) a desobedecer as ordens do rei (autoridade que mandara matar os meninos hebreus para que não se tornassem numerosos e uma ameaça ao povo dominador, Ex 1: 15-22), levanta lideranças (Ex 3) e age na história de vários modos para libertar e ensinar a viver em liberdade (Ex 15, 16, 18; Lv 19, 25; Dt 5: 1-22, 10: 12-22). 
Aos poucos, ainda no Antigo Testamento, não de forma linear ou uniforme, Deus vai se revelando não como restrito ao povo escolhido ou como exclusivo de um povo específico (visão que permeia o Pentateuco, Esdras e Neemias e Ester, por exemplo), mas sim o Deus que chama-forma um povo para através dele abençoar todas as famílias da terra (Gn 12: 1-3), que requer amor ao imigrante (ao diferente) como a si mesmo (Lv 19: 18, 33-34), que faz da mulher-pobre-estrangeira protagonista na história da Salvação (pequeno gigante livro de Rute), bem como destina sua misericórdia não apenas ao povo escolhido, mas até mesmo a um povo inimigo e perverso que se converte de sua má conduta e violência (livro de Jonas). Ali está o Deus cuja misericórdia não cabe em quaisquer fronteiras!
Esta revelação culmina em Jesus, Palavra que desde o princípio era e estava com Deus, Palavra criadora, amorosa e salvífica que se fez gente e habitou entre nós, o Filho através do qual vemos o Pai e vamos a Ele (João 1). E Jesus, o Emanuel (Deus conosco), assume integralmente nossa humanidade, da fome à festa (Mt 4.2; Jo 2: 1-12), do nascimento como refugiado (Mt 2: 13-15) e sem teto (Lc 2: 1-7) à cruz (Lc 23: 33). Da morte (Lc 23.46) à ressurreição (Lc 24; Mt 28; Mc 16; Jo 20). E em sua missão de trazer vida plena (Jo 10.10) e salvação (Jo 3.16), Jesus prioriza os marginalizados, excluídos, discriminados, os mais vulneráveis de seu tempo: leprosos (Lc 5: 12-16), famintos (Lc 9: 10-17), crianças (Mt 19: 13-15), mulheres (Jo 8: 1-11), cobradores de impostos e pecadores (Mt 11: 16-19). Chega a dizer que, no Juízo Final, serão acolhidas na Eterna comunhão com Deus as pessoas que lhe deram de comer e beber em quem tem fome-sede, quem o visitou no preso, quem o vestiu em quem não tem o que vestir, quem o acolheu no estrangeiro, quem o visitou no preso. O que se faz aos “pequeninos”, se faz ao próprio Jesus (Mt 25: 31-46). Não custa lembrar que este é o Jesus que encontramos nos Evangelhos, que centrou sua vida no amor, na compaixão solidária (Lc 10: 25-37), na paz desarmada (Lc 22: 47-51; Lc 23: 33-34), na inclusão dos apartados.    
Pois bem, neste ano, o samba enredo da Mangueira, tradicional escola de samba do Rio de Janeiro,  chama-se  “A verdade vos libertará”, de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo, e faz uma desafiadora e instigante relação entre Jesus e a atual situação brasileira, sobretudo a partir de quem mais sofre as consequências de nossas injustiças, violências e contradições: negros(as), indígenas, mulheres, trabalhadores, povo da periferia. 
Aqui se faz necessário um parêntese. Não se deve esquecer que a fé cristã chegou ao Brasil pelas mãos dos colonizadores, isto é, junto com um processo de conquista de terras, povos, riquezas, dominação de civilizações nativas e povos indígenas, bem como a escravização dos povos negros trazidos da África. Nisto embutido a ideia de superioridade cultural do colonizador e inferiorização-demonização da cultura dos povos dominados. Depois, os missionários protestantes também trouxeram com o Evangelho suas culturas do hemisfério norte e também caíram na tentação de considerar a própria cultura superior à dos povos nativos, associando a cultura popular ao profano e ao pecado. No samba “Pra que discutir com Madame”, de Haroldo Barbosa e Janet almeida, imortalizado por João Gilberto, este viés herdeiro da colonização escravocrata é ironizado com primor: 
Madame diz que a raça não melhora
Que a vida piora por causa do samba
Madame diz o que samba tem pecado
Que o samba, coitado, devia acabar
Madame diz que o samba tem cachaça
Mistura de raça, mistura de cor
Madame diz que o samba democrata
É música barata sem nenhum valor
Vamos acabar com o samba
Madame não gosta que ninguém sambe
Vive dizendo que samba é vexame
Pra quê discutir com madame? (...)
No carnaval que vem também concorro
Meu bloco de morro vai cantar ópera
E na Avenida, entre mil apertos
Vocês vão ver gente cantando concerto
Madame tem um parafuso a menos
Só fala veneno, meu Deus, que horror
O samba brasileiro democrata
Brasileiro na batata é que tem valor

Por outro lado, na cultura brasileira, o samba é expressão de resistência aos sofrimentos, criatividade, beleza e alegria de viver que vem do povo negro e se espalha, desde o tempo da escravidão ao atual cotidiano com suas lutas, risos e lágrimas. Como bem diz Caetano Veloso:
A tristeza é senhora
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura
A noite e a chuva que cai lá fora
Solidão apavora
Tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece
No quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora
O samba ainda vai nascer
O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer
Veja o dia ainda não raiou
O samba é pai do prazer
O samba é filho da dor
O grande poder transformador

Fechado o parêntese, percebe-se qual a origem do incômodo de alguns grupos cristãos com a referência a Jesus num samba enredo de carnaval. Alguns chegam a dizer que é uma blasfêmia, pois não caberia tratar de Jesus nas formas da cultura popular e em situações que consideram profanas.  Como se houvesse situações-lugares interditados à mensagem do Evangelho. Acontece que o próprio Jesus encarnou a presença divina no mundo, no meio da gente, no meio, inclusive e principalmente, dos excluídos. E convidou, em seus ensinos, a ser luz do mundo, sal da terra. Paulo, por sua vez, quando anuncia o Evangelho em Atenas, o faz dialogando com a cultura daquele lugar, cita os poetas gregos – “somos raça do próprio Deus” – para dizer que em Deus nos movemos, vivemos e existimos (At 17: 16-28). Nesta passagem Paulo deixa duas lições preciosas: há que se comunicar a mensagem de Jesus em diálogo com a cultura do lugar onde se está e que nada, nem lugar algum está fora da sagrada presença divina.  
Outra coisa que incomoda é o conteúdo da poesia, principalmente a ouvidos fundamentalistas ou que apoiam a atual necropolítica brasileira. Diz o samba:
Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no buraco quente
Meu nome é Jesus da Gente
Ora, onde está a blasfêmia se Jesus, nos Evangelhos, se identifica com os sofridos? Hoje os “pequeninos”, os mais vulneráveis não são justamente o negro, o índio, a mulher, o pobre? Não é neles que Jesus nos chama a servi-lo? (Mt 25: 31-46)
Noutros versos diz:
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão
E no olhar da porta-bandeira pro seu pavilhão
Ora, onde está a blasfêmia se Jesus acolhia e convidava quem estivesse cansado e sobrecarregado que ele aliviaria (Mt 11: 28-30), se Jesus demonstrou que sua atuação extrapolava o povo judeu, por exemplo, curando a filha da mulher siro-fenício (Mt 15: 21-28)  e o empregado do centurião romano (Mt 8: 5-13)? E Jesus não se opôs à opressão em suas mais diversas expressões?
Talvez os versos que mais têm sido citados por aí são estes:
Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão
Onde está a blasfêmia? Desde o Antigo Testamento o maná no deserto era para ser dividido de tal modo que a quem tivesse mais não sobrasse e a quem tivesse menos não faltasse (Ex 16: 17-18), Jesus repartiu pães e peixes no milagre da solidariedade (Mt 14: 13-21) e uma das características das primeiras comunidades era que todos abraçavam a fé dividiam o que tinham de tal maneira que ninguém passasse necessidade (At 2: 44). Justiça, no sentido bíblico e cristão, passa pela partilha, um contraponto à nossa realidade de gigantesca concentração de recursos com poucos e crescente escassez e privação para a maioria. Da justiça, e não das armas, é que virá a paz. “O fruto da justiça será a paz. De fato, o trabalho da justiça resultará em tranquilidade e segurança permanentes”, dizia o profeta Isaías (Is 32.17). E Jesus sempre defendeu a paz desarmada (diferente da Pax romana de sua época, bélica e opressora), haja vista, por exemplo, quando Pedro cortou a orelha de Malco, que buscava prender Jesus. Além de repreender a Pedro (“Guarde a espada na bainha”), Jesus cura a orelha de quem o procurou para prender e levar ao processo da crucificação. Bem diferente do atual modelo de segurança pública que tentam sustentar no Brasil, centrado num “fogo cruzado” onde quem mais morre são os pobres, negros, crianças, jovens, trabalhadores. 
Vinícius de Moraes dizia que o samba pode ser uma forma de oração. E assim começa o samba da Mangueira: 
Senhor, tenha piedade
Olhai para a terra
Veja quanta maldade
Esta é também nossa oração. Neste Brasil de tantas formas de injustiça e violência. Que Deus nos ajude a compreender e viver a mensagem de Jesus, profética, libertadora, amorosa, includente, salvífica. Por tudo isso, estou do lado de Jesus, da Mangueira e do Samba também!

9 comentários:

  1. Excelente texto que oportuniza a nós cristãos a reflexão da mensagem do Cristo vivo no meio de nós e o indicativo para nossas ações, Cristo que inclui,sem acepção de pessoas, que dia a dia nos diz, "vinde a mim". Obrigada pela oportunidade que vc nis deu nesse lindo e amoroso texto.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

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